A PERGUNTA DE RAFAEL




Crônicas engavetadas. Tenho várias. Aqui está uma
datada de abril de 1965. Como o assunto se tornou o-
portunissimo resolvi publicá-la. Vejamo-la:


“Tarde de verão no interior da Bahia. Sombra gostosa de avarandado
na fazenda. Bate-papo na “sombra com água fresca”. Quando se aproxima
Rafael, já meio curvado sob o peso dos anos, cabeça quase branca exibindo
o inverno dos janeiros. Vai chegando, suado, com o seu “boa tarde pra vos-
micês”. E uma observação sai de um dos presentes.
─ Rafael, você já está bem maduro! Já está precisando de ser aposen-
tado!
─ Tou mesmo. Tou muito precisado de pusentadoria. mas quem é que
pusenta?
Todos sorriram e ninguem soube responder. A conversa tomou outros
rumos, já não me lembro quais. O de que me lembro, o de que não conse-
gui esquecer, foi da pergunta de Rafael: “Quem é que me aposenta? Os Ra-
faeis de todo este nordeste, de todo este imenso Brasil não tem quem os
apoesente!
Há uma quantidade muito grande, a grande maioria de trabalhado-
res rurais que não tem patrões. Não são, tais trabalhadores, empregados de
ninguem, são trabalhadores de todos os visinhos: trabalham hoje a um fazen-
deiro, amanhã a outro, depois a outro, com intervalos de diárias dadas em
suas próprias rocinhas, pequenas lavouras de mandioca, mamona, milho e
feijão. Rafael, por exemplo, vive no seu “taquinho de chão” que não tem
capacidade produtiva capaz de dar sustento a uma família. Outros moram
de favor em casa de fazendas, sem nenhuma ligação profissional com o fazen-
deiro proprietário! Pedem, às vezes, ao fazendeiro que permita fazer um ran-
cho e botar uma roça; e o fazendeiro, quase sempre, accede. Assim, não há
e não pode haver nenhuma obrigação do fazendeiro para o morador. Outros
moram em casinhas próprias, em povoados e arraiais. constituem, tais tra-
balhadores sem patrões, a massa de trabalhadores rurais. Quando envelhecem,
ou adoecem, ficam “entregues ao Deus dará”. Conheço muitos velinhos que
foram ótimos e incansáveis trabalhadores e vivem na humilhação da mendi-
cância, morrem mendigos. Quando adoecem apelam para os chás de folhas
ou de raízes porque remédio de farmácia está se tornando, cada vez mais,
privilégio de gente rica. Há os que têm filhos, vivendo em São Paulo e Pa-
raná, mandando dinheirinhos pelo correio ou pelos bancos. mas são nume-
rosos os que, por sua vez, são pais de muitos filhos, pouco ou nada podendo
fazer por seus velinhos. E as gazetas e os discursos andam cheios de refor-
ma agrária, de preocupações com ruralistas, trabalhadores do campo e etc.
e tal. Mas a verdade, a verdade nua e crua, a verdade dolorosa é que a per-
gunta de Rafael continua sem ter quem se preocupe com ela. Os Rafaeis
continuam sem amparo nas doenças e na velhice. Quando aparece alguem
se referindo aos pobres, com palavras de amor para os pobres, quase sempre
está é de ôlho nos votos dos ditos. Votos de pobres que se tornaram degráus
de escada para cidadãos que nunca tendo se lembrado dos pobres, não tendo
querido mistura com eles, se tornam, de repente, delicados, atenciosos, amá-
veis para os pobres... em vésperas de eleições...”
Até aqui, palavras da crônica escrita em 1965 e que, com várias outras
que boto nos cadernos, vão ficando sem publicação. O ceticismo amarelo a-
tuava perguntando e respondendo: “Publicar para que?! Não adianta!” Mas tal
ceticismo não tinha mais razão de ser. Porque já havia acontecido o 31 de
Marça de 1964. Acontecera a Revolução. A Revolução Brasileira, que se di-
fere profundamente da Revolução Francêsa, da Revolução Russa, da Revolu-
ção Cubana, de todas as revoluções do mundo. As outras produziram qui-
lhotinas, campos de torturas, escravidões. A Revolução Brasileira faz mila-
grés, inclusive o milagre de responder a pergunta de Rafael. A Revolução
nos deu Garrastazu Médice e Garrastazu respondeu a pergunta de Rafael man-
dando a previdência social levar-lhe o pão, a roupa, o remédio, o consôlo, a-
alegria a quase todos os Rafaeis do Brasil ─ que a quantia que eles estão re
cebendo significa tudo isto. Digo quase todos porque, infelizmente, ainda há
Rafaeis velhinhos e tristes para cujos lares está proibida a dádiva da previv-
dência. Pedreiros, carpinas, ferreiros, funileiros, sapateiros,s pintores de parede,
enfim: todos esses pequenos artistas que sob o pêso de mais de 65 janeiros e
da pobreza em todas as pequenas cidades e povoados deste imenso Brasil, es-
tão sofrendo o desamparo pelo crime de não viverem da enxada, da lavoura.
Quando procuram o Funrural encontram a porta fechada. E voltam mais
tristes, com a dor doendo mais. Tendo dito a alguns deles: ─ Não se entris-
teçam: porque o mesmo Garrastazu que se lembrou dos pobres das roças não
vai ficar sem lembrar de vocês. Rezem pedindo a Deus que ilumine o Presi-
dente. Com a certeza, certeza absoluta, de que tais preces não serão perdidas.
Amem. Mundo Nôvo, Outubro de 1972.
EULÁLIO MOTTA
A folha mede 160 milímetros de largura por 325 milímetros de altura. O papel é de alta gramatura e baixa lisura, amarelado. O texto foi impresso em prensa de tipos móveis. O layout é simples, com pouca variação de tipo de letra e não há espaço especial entre os parágrafos, mas simetricamente o texto está bem estruturado. Para o destaque de palavras no interior do texto o tipógrafo utilizou uma fonte diferente, desalinhando o texto (linha 61). Há uma nota introdutória contextualizando a escrita do texto que, em parte, reproduz uma crônica de 1965. Foram preservados vinte exemplares desse panfleto.